domingo, 7 de outubro de 2018

O Conservadorismo Anglo-Saxão 4 - Os Protagonistas - Edmund Burke

Will & Ariel Durant História da Civilização


Não era inglês exceto por adoção, não pertencendo a nenhuma aristocracia, salvo a do espírito. Talvez sua simpatia, que durou a vida inteira, pelos católicos da Irlanda e da Inglaterra, deva-se ao fato de sua mãe e irmã terem sido católicas, assim como sua constante ênfase sobre o fato de ser a religião um baluarte indispensável à moralidade do Estado. Recebeu educação formal em uma escola quacre em Ballitore, e na Universidade de Trinity, em Dublin. Aprendeu bastante latim para admirar as orações de Cícero, tornando-as o alicerce de seu estilo dialético. 

Em 1750, foi para a Inglaterra a fim de estudar direito no Middle Temple. Mais tarde, elogiou o direito como a ciência que faz mais para tornar a compreensão viva e vigorosa do que todos os outros estudos juntos, porém achava que ela não está apta, exceto nas pessoas nascidas em condições muito favoráveis, para abrir e liberalizar a mente exatamente na mesma proporção. Por volta de 1775, seu pai suspendeu-lhe a mesada sob alegação de que ele estava negligenciando seus estudos de direito para seguir outros caminhos. Parecia que Edmund desenvolvia gosto para a literatura, constantemente frequentando teatros, e os clubes onde se realizavam debates, em Londres. Há uma lenda sobre ele ter-se apaixonado pela famosa atriz Peg Woffington. Burke escreveu a um amigo, em 1757: Rompi com todos os regulamentos, negligenciei qualquer decoro. E passou a descrever sua maneira de vida como variegada de diversos desenhos. Às vezes estava em Londres, outras, em partes remotas do país, algumas vezes na França, e, em breve, se Deus quiser, na América”.

Além disso, nada sabemos a respeito de Burke nesses anos experimentais, a não ser que, em 1756, em sequência irregular, publicou dois livros extraordinários e se casou. Um dos livros intitulava-se A Vindication of Natural Society, or a View of the Miseries and Evils arising to Mankind from Every Species of Artificial Society. A Letter to Lord – By a late Noble Writer (Reivindicação da Sociedade Natural, ou Aspecto dos Sofrimentos e Males que Recaem Sobre a Humanidade Procedentes de Toda Espécie de Sociedade Artificial. Carta a Lorde – Por um Antigo Nobre Escritor). Este ensaio, de umas 45 páginas, constitui vigoroso libelo contra qualquer governo, ele é muito mais anarquista do que o Discurso sobre a Origem das Desigualdades, de Rousseau, que aparecera há apenas um ano. Burke definiu a sociedade natural como uma sociedade fundada em decorrências de apetites e instintos naturais, e não resultante de uma positiva instituição:

'O desenvolvimento das leis era uma degenerescência. A história é um registro de carnificinas, traição e guerra, e a sociedade política é justamente acusada da maior parte dessa destruição. Todos os governos seguem os princípios de Maquiavel, rejeitam quaisquer restrições morais, dando aos cidadãos um exemplo desmoralizador de cobiça, roubo e homicídio. A democracia em Atenas e Roma não trouxe nenhuma cura para os males do governo, pois logo tornou-se uma ditadura pela habilidade dos demagogos em conquistar admiração por parte das maiorias simplórias. A lei é a injustiça codificada. Protege os ociosos ricos contra os pobres explorados, acrescentando um novo mal – advogados. “A sociedade política transformou em muito a propriedade de poucos”. Basta olhar a condição dos mineiros da Inglaterra e considerar se tal miséria poderia ter existido em uma sociedade natural – isto é, antes de fazerem as leis. Devemos não obstante, aceitar o Estado como a religião que o apoia, como necessário a natureza do homem? Absolutamente não.



Se estamos resolvidos a submeter a nossa razão e liberdade à usurpação civil, nada temos a fazer senão conformarmo-nos o mais silenciosamente possível às noções (populares) vulgares a ela relacionadas, adotando a teologia do plebeu, assim como a sua política. Mas, se julgarmos essa necessidade mais imaginária do que real, renunciemos aos sonhos deles de uma sociedade, juntamente com as suas visões religiosas, e reivindiquemos a nossa liberdade.'

Isso tem o tom audacioso e a raivosa sinceridade de um jovem rebelde, um jovem de espírito religioso mas que rejeita a teologia estabelecida, sensível à pobreza e à degradação que vira na Inglaterra, um talento cônscio de si mesmo, mas ainda sem lugar e posição na voragem do mundo. Qualquer um, jovem e ativo, passa por esta fase no seu caminho para as posições, posses e um conservadorismo alarmante que vamos encontrar em Reflections on The Revolution in France, de Burke. Notamos que o autor de Vindication cobria sua trajetória de anonimato, até mesmo fazendo-se de morto. Quase todos os leitores, inclusive William Warburton e o Conde de Chesterfild, compreenderam que essa trajetória era uma verdadeira investida aos males correntes, e muitos o atribuíram ao Visconde de Bolingbroke, que, tendo morrido em 1751, era um Nobre Escritor falecdo. Nove anos após a publicação do ensaio, Burke apresentou-se candidato à eleição do Parlamento. Temeroso de que sua agitação da juventude fosse prejudica-lo reimprimiu-o em 1765 com um prefácio que dizia: O objetivo da pequena peça literária que se segue era demonstrar que (...) a mesma máquina (literária) utilizada na destruição da religião poderia ser empregada com idêntico sucesso na subversão do governo. A maioria dos biógrafos de Burke aceitou a explicação como sincera. Não podendo acompanha-los, compreendemos, entretanto, o esforço de um candidato político para proteger-se contra o preconceito popular. Qual de nós teria um futuro se seu passado fosse conhecido? A primeira coisa que um home fará por seus ideais é mentir. J.A. Schumpeter.

Tão eloquente quanto a Vindication, e muito mais sutil, foi a outra publicação de Burke, em 1756: A Philosophical Enquiry into the Origins of the Sublime and Beautiful (Investigação Filosófica sobre a Origem do Sublime e do Belo), à qual, numa segunda edição acrescentou A Discourse on Taste (Discurso sobre o Gosto). Temos que admirar a coragem deste jovem de 27 anos ao dedicar-se a esses assuntos evasivos uma década anterior ao Laocoonte de Lessing. Deve ter-se guiado pela introdução do Livro II de Lucrécio, De rerum natura: quando os ventos agitam as águas de um mar poderoso, é agradável presenciar da terra uma outra grande luta, não por constituir prazer assistir à angústia de alguém, mas porque é reconfortante ver de que perigos você mesmo se libertou. De modo que Burke escreveu: As paixões que pertencem à outopreservação transformam-se em sofrimento e perigo. São absolutamente penosas quando seus efeitos de imediato nos afetam e deliciosas quando temos uma ideia de sofrimento e do perigo sem estarmos realmente em tais circunstâncias. (...) O que quer que excite esse prazer eu chamo de sublime.” E, em seguida: todas as obras de grande esforço, despesa, e magnificência são sublimes (...) e todas as construções de grande riqueza e esplendor, (...) pois ao contemplá-las a mente aplica as ideias da grandeza do esforço necessário para produzir tais obras àquelas mesmas obras. Melancolia, escuridão e mistério ajudam a despertar o sentido do sublime. Daí a preocupação dos construtores medievais em deixar entrar em suas catedrais apenas uma luz tênue filtrada para seus interiores. As ficções românticas, tais como Castelo de Otranto de Horace Walpole (1764), ou Mistérios de Udulpho de Ann Radcliffe (1794). Aproveitaram-se dessas ideias.

A Beleza, disse Burke, é um nome que aplicarei àquelas qualidades nas coisas que nos induzem ao sentido de afeição e ternura, ou qualquer outra paixão que mais se assemelhe a essas. Rejeitava a clássica redução dessas qualidades à harmonia, unidade, proporção e simetria. Concordamos que o cisne é belo, embora seu longo pescoço e cauda curta sejam desproporcionais ao corpo. Em geral o que é belo é pequeno (por conseguinte, contrastando com o sublime). Não me recordo de nada belo que não seja macio. Uma superfície quebrada ou áspera, um ângulo agudo ou uma súbita projeção irão nos perturbar, limitando nosso prazer mesmo nos objetos que de outra maneira seriam belos. Um ar de robustez e força é muito prejudicial à beleza. A aparência de delicadeza, e até mesmo de fragilidade, é quase essencial a essa qualidade. A cor acrescenta a beleza, sobretudo se é variada e viva, mas não forte e brilhante. – Estranho é dizer que Burke não indagava se uma mulher era bela por ser pequena, macia, delicada, colorida, ou se essas qualidades parecem belas porque nos fazem lembrar a mulher, que é bela porque é desejada. 

De qualquer modo, June Nugente era atraente, e Burke casou-se com ela naquele ano fecundo de 1756. Ela era filha de um médico irlandês e católica, mas logo adotou o culto anglicano. Seu gênio brando e gentil acalmava o temperamento irascível do marido.

A impressão despertada pelo estilo, se não os argumentos de Vindication e Enquiry, abriram as portas para Burke. O Marquês de Rockingham Contratou-o na qualidade de secretário, apesar da advertência do Duque de Newcastle de que Burke era um irlandês selvagem, um jacobita, um papista oculto e jesuíta. Mais tarde, em 1765, Burke foi eleito para o Parlamento pelo burgo de Wendover, através da influência de Lorde Verney “que era dono do burgo”. Na Câmara dos Comuns, o novo membro granjeou reputação de eloquente, mas pouco persuasivo. A voz era áspera, a pronuncia irlandesa, os gestos desajeitados, os gracejos grosseiros, as denúncias indevidamente apaixonadas. Somente quando o liam é que percebiam estar ele criando uma literatura da mesma forma como falava – domínio da língua inglesa, descrições brilhantes, grau de cultura, suas comparações e a faculdade de levar a filosofia às questões da vida diária. Talvez tais qualidades estivessem prejudicadas nos Comuns. Alguns dos que o ouviam, diz-nos Goldsmith, gostava de vê-lo enroscar-se em suas palavras como uma serpente, mas muitos outros impacientavam-se com sua riqueza de detalhes, suas digressões para a teoria, o floreado de seus discursos, suas frases de períodos grandes e maciços, seus voos de elegância literária. Queriam considerações práticas e aplicabilidade imediata. Elogiavam lhe os discursos, porém, ignoravam seus conselhos. Assim é que, quando Boswell disse que Burke parecia um gavião, Johnson contradisse: sim, mas ele não pega nada. Até o fim ele defendia políticas desagradáveis ao povo, ao ministério e ao rei. Sei, dizia, que o caminho por mim trilhado não é o que me possa trazer lucro.

Parece que, durante os dias de sua ascensão, Burke leu muito e judiciosamente. Um contemporâneo descreveu-o como uma enciclopédia, da qual todo mundo recebia esclarecimentos. Fox fez-lhe um elogio ilimitado: Se ele (Fox) colocasse em uma balança toda a informação política que havia captado nos livros, toda a que obtivera da ciência e toda a que qualquer conhecimento do mundo e suas ocorrências lhe houvessem ensinado, e numa outra balança todos os esclarecimentos obtidos das instruções e palestras do seu prezado amigo, ficaria indeciso sobre qual escolher. Johnson, que costumava dispensar elogios em pequenas doses, concordou com Fox: Você não poderia ficar cinco minutos com este homem debaixo de um alpendre enquanto chovesse, mas ficaria certo de que estivera em companhia do maior homem que jamais viu.

Burke aderiu ao grupo de Johnson-Reynolds por volta de 1758. Nunca encetava debates com o invencível polemista, temendo o seu próprio gênio tanto como o de Johnson, mas quando o fazia, o Grande Khan encolhia as garras. Quando Johnson (Samuel Johnson) ficava doente, e alguém mencionava o nome de Burke, o nosso doutor exclamava: Esse camarada subtrai-me todos os recursos. Se eu visse Burke agora, morreria. Contudo, os dois homens concordavam em todas as questões básicas sobre política, moral e religião. Aceitavam o regime aristocrático da Grã-Bretanha, embora ambos fossem cidadãos sem nobreza. Desprezavam a democracia como a entronização da mediocridade. Advogavam o cristianismo ortodoxo e a Igreja oficial como insubstituíveis baluartes da moral e da ordem. Apenas a revolta das colônias americanas os dividia. Johnson considerava-se em tory, denunciando os whigs como criminosos e loucos. Burke considerava-se um whig, apresentando uma defesa dos princípios tories mais consistente e bem estruturada do que qualquer homem na história da Inglaterra.

Samuel Johnson (Lichfield, 18 de Setembro de 1709 - Londres, 13 de Dezembro de 1784), também conhecido em língua inglesa como Dr Johnson, foi um escritor e pensador inglês que conhecido por suas notáveis contribuições à língua inglesa como poeta, ensaísta, moralista, biógrafo, crítico literário e lexicógrafo. Possivelmente o "mais distinto homem de letras da história da Inglaterra", Johnson é personagem da "mais reconhecida biografia do mundo da literatura", o trabalho Life of Samuel Johnson de James Boswell.

Em 1737, com seu aluno David Garrik, foi para Londres, onde iniciou intensa atividade de crítico e jornalista. Em pouco tempo conquistou grande reputação, confirmada com a publicação de A vida de Richard Savage, em 1744 e do Dicionário da língua inglesa, em 1755. Ao mesmo tempo, colaborou com a revista The Rambler (1750/52) e depois em The Idler, (1758/60). A influência literária de Samuel Johnson tornou-se cada vez maior, especialmente depois que criou em 1764 um clube literário com os amigos Edward Gibbon, Joshua Reynolds, Oliver Goldsmith e Edmund Burke.

Por vezes, Burke parecia apoiar os elementos mais questionáveis para a eleição dos membros ou a promulgação das leis. Julgava perdoáveis os burgos “rotten” (podres, subornáveis) ou “pocket” (circunscrição eleitoral dominada por uma só pessoa ou família, na Inglaterra), de vez que o enviavam ao Parlamento gente boa como ele próprio. Em vez de se ampliar o sufrágio, achava que reduzindo o número contribuiriam para a qualidade e independência dos eleitores. Não obstante, patrocinou centenas de causas liberais. Advogava liberdade de comércio antes de Adam Smith e atacava o tráfico de escravos antes de Wilberforce. Atacava a inabilitação política dos católicos, apoiando a petição dos Dissidentes relativamente a amplos direitos civis. Procurou suavizar a severidade bárbara do código penal, e os obstáculos da vida militar. Reivindicou liberdade de imprensa, embora ele mesmo houvesse sentido suas ferroadas. Punha-se ao lado da Irlanda, da América e da Índia, diante da maioria chauvinista. Pugnava pelo Parlamento, contra o rei, com uma candura e audácia que afastava qualquer risco de lhe serem impostas penalidades. Podemos contestar seus pontos de vista e suas razões, porém, jamais duvidar de sua coragem.


Uma festa literária na casa de Sir Joshua Reynolds. A gravura de 1851, mostra os amigos de Reynolds - muitos dos quais eram membros do "The Club" Da esquerda para a direita - Boswell, Samuel Johnson, Joshua Reynolds, David Garrick, Edmund Burke, Pasqual Paoli, Charles Burney, Thomas Warton e Oliver Goldsmith, em pé com a bandeja um servente, possvelmente Francis Barber.

A última cruzada da carreira de Burke – contra a Revolução Francesa – custou-lhe a amizade de um homem a quem há muito admirava e amava. Charles James Fox retribuiu-lhe a afeição, compartilhando com ele dos perigos de lutas em uma dúzia de causas, porém, deferia de Burke em quase todas as qualidades de espírito e caráter, exceto humanidade e bravura. Burke era irlandês, pobre, conservador, religioso moral. Fox era Inglês, rico, radical, mantendo apenas a parcela de religião que pudesse comportar jogo, bebida, amantes e a Revolução Francesa. 

Sobre Vindication of Natural Sociaty e a explicação de Burke não aceita por Durant no sentido de que “O objetivo da pequena peça literária que se segue era demonstrar que (...) a mesma máquina (literária) utilizada na destruição da religião poderia ser empregada com idêntico sucesso na subversão do governo.” Acrescenta-se da Obra – Edmund Burke Redescobrindo um Gênio – Russel Kirk:

A obra A Vindication of Natural Society, que nos primeiros dias conferiu renome a Edmund Burke, foi uma resposta ao finado Visconde de Bolingbroke; contudo, antecipou a esmagadora investida que lançaria contra Rousseau nos últimos anos de vida. O homem não é plenamente homem – assim discorre o argumento perpétuo de Burke – até que seja totalmente civilizado; adquire sua natureza suprema quando se faz membro de uma cultura, de uma ordem social civil. No selvagem, a verdadeira natureza de homem encontra-se somente em estado de latência.

Assim, Vindication é um exitosíssimo exercício de ironia. Parodiando magistralmente o estilo célebre de Bolinbroke, Burke pôs-se  a demonstrar que, se a religião natural é preferível ao conhecimento religioso que adquirimos pela Revelação, pela reta razão e por milhares de anos de experiência em comunidade religiosa, então a sociedade natural deve ser preferível aos benefícios da sociedade justa, livre e ordenada que obtemos por intermédio de complexas instituições econômicas e políticas

Certa vez Samuel Johnson deu como exemplo de frase irônica: Bolingbroke é um homem santo. Bolingbroke, engenhoso e liberalizante, afirmara que o homem não necessita dos dogmas, doutrinas e instituições da Igreja Cristã, mas emendar-se segundo uma religião natural instituída com base nos instintos e no juízo privado. Para atacar essa falácia de vez, Burke arremedou a teoria de Bolingbroke, expondo as consequências de tais noções quando aplicadas ao corpo político. Qualquer homem educado, argumentou, pode perceber o absurdo de uma sociedade natural, conveniente tão somente para selvagens, como substituta da intricada ordem social da Europa, que preserva os homens da anarquia. Por analogia, uma religião natural só poderia reduzir o homem à anarquia do espirito e dos costumes. Em questões espirituais, assim como em questões temporais, necessitamos da justa autoridade, da sabedoria dos ancestrais e das instituições que foram elaboradas com dificuldade, ao longo dos séculos, por homens que, às apalpadelas, buscavam meios para conhecer a Deus e para conviver entre si e com seus semelhantes. 

Diversas vezes, ao longo de sua carreira política, os opositores de Burke, empenharam-se, de maneira inescrupulosa, em utilizar tal livro dos primórdios de sua carreira para ataca-lo, afirmando que havia insultado seriamente a Igreja e o Estado – embora quem quer que conhecesse Burke soubesse muitíssimo bem que essa obra-prima de ironia era criação de um homem imbuído dos ensinamentos e da tradição cristãos e do mais temível defensor de usos políticos consagrados. Na segunda edição da obra, de fato, Burke achou por bem declarar que era um escrito irônico, e em várias ocasiões repetiu essa afirmação, que deveria ter parecido óbvia a qualquer pessoa, menos ao iletrado. Assim, a tentativa de alguns anarquistas filosóficos do século XX de representar Burke como um defensor de um modo de existência social anárquica, “natural”, é assaz absurda. (Um exemplo da defesa dessa postura é a visão de Murray N. Rothbard (1926-1995) sobre Edmund Burke, seguida até hoje por muitos libertários – A Note On Burke’s Vindication of Natural Society).

Da obra “Os Clássicos da Política, Vol. II” de Francisco Weffort: (...) Em 1756 surge seu primeiro trabalho: A vindication of the Natural Society. Plublicado anonimamente e no estilo de Bolingroke, renomado pensador político, este ensaio de filosofia social era uma sátira dirigida às ideias deste pensador. E Burke imitou seu estilo de forma tão perfeita que mesmo os críticos acreditaram se tratar de uma obra de Bolingbroke. A verdadeira autoria só viria a ser conhecida com a segunda edição do livro, em cujo prefácio Burke explica sua intenção satírica. 

Burke em defesa do Parlamento – Durante todo o período que vai de 1766 a 1794, Burke foi um atuante membro do Parlamento e, como tal, esteve presente nos principais acontecimentos políticos da Inglaterra dos meados do século XVIII. Referir-se a esta época e a este lugar é situarmo-nos em um período histórico em que já despontavam na Inglaterra sinais do grande surto econômico provocado pela Revolução Industrial; significa, também, colocarmo-nos em um país onde há quase um século ocorrera a derrocada da monarquia absolutista (Carlos I) e onde a ordem capitalista já se tornara parte do status quo, instaurada como foi na Inglaterra por um processo de acomodação progressiva do novo na velha ordem tradicional. 

Num contexto mais específico, a época em que Burke iniciou sua carreira política coincide com um evento que iria ter consequências significativas na política britânica: a ascensão de Jorge III ao trono da Inglaterra. Tornando-se rei em 1760, Jorge III iria tentar de todas as formas assegurar um papel mais ativo para a Coroa, a qual, desde a Revolução Gloriosa de 1688, havia perdido influência em benefício do fortalecimento do Parlamento. Assim, os primeiros 35 anos do reinado de Jorge III foram marcados pela ação deliberada do rei com vistas a reverter, a qualquer custo, a tendência prevalecente nas décadas anteriores, de modo a reconquistar para a Coroa o poder efetivo. E, nesta luta, Edmund Burke se colocou ao lado do Parlamento, defendendo o regime parlamentar e a ordem constitucional inglesa. Um dos escritos mais notáveis sobre esta problemática, é sem dúvida, o panfleto de Burke datado de 1770 e intitulado Thoughts on The cause of the presente discontents, (Pensamentos sobre a causa dos descontentamentos presentes). Fazendo uma análise da situação política da época, Burke argumentava no sentido de mostrar que as ações de Jorge III chocavam-se com o espírito da Constituição; e denunciava como prática de favoritismo o critério pessoal na escolha dos ministros. Combatendo a camarilha do rei, Burke defendia a escolha dos membros do ministério segundo bases públicas, isto é, através da aprovação do Parlamento, que representa a soberania popular (1?). É neste ensaio que encontramos, pela primeira vez expressa de forma inequívoca, uma defesa dos partidos políticos como instrumentos de ação conjunta na vida pública

Burke e a Soberania Popular – Com relação a América, Burke, em seus pronunciamentos, defendia a necessidade de se encontrar uma solução harmônica para o problema daqueles que, em verdade, eram descendentes dos ingleses e que, como estes, possuíam o espírito de liberdade que tão bem encarnavam as instituições britânicas; argumentava que estava em risco não apenas as liberdades dos americanos mas a próprias liberdades dos ingleses. 

Se foi em nome dessas liberdades que Burke se insurgiu contra as investidas da Coroa em tentar aumentar seu poderio interna e externamente, foi em nome da ordem e das tradições inglesas que Burke iniciara uma cruzada contra o acontecimento histórico mais surpreendente de sua época, a Revolução Francesa de 1789. Sua hostilidade desmensurada a este movimento revolucionário sem precedentes, que causara entusiasmo entre os ingleses, inspirou-lhe a produção de sua mais importante obra: Reflexões sobre a revolução em França, publicada em 1790. Esta obra foi motivada por um pronunciamento do dissidente protestante Richard Price, que, elogiando a Revolução Francesa, elegia-a como modelo aos britânicos. Assim é que grande parte desta obra tem por fim dinamitar os argumentos dos defensores na Inglaterra daquelas ideias radicais que impulsionaram a Revolução, as quais Burke temia que fossem generalizadas. Desta maneira, Burke discute as ideias fundamentais que animaram o movimento, tais como a questão da igualdade, dos direitos do homem e da soberania popular; alerta contra os perigos da democracia em abstrato e da mera regra do número; ainda afirma Burke que a virtude, o espírito e a essência da Câmara dos Comuns consiste em ser ela a imagem expressa dos sentimentos da nação. Ela não foi instituída para ser um controle sobre o povo. Ela foi planejada como um controle para o povo. Assim, tem uma posição-chave nesse arranjo constitucional a Câmara dos Comuns, através da qual o povo está representado. No entanto, o caráter representativo desta Câmara é para Burke muito mais virtual do que real, e tem pouco a ver com a base eleitoral, mesmo porque Burke se opunha à extensão do sufrágio. Segundo burke, os interesses têm uma realidade objetiva e são o fruto de debate de deliberação entre homens de sabedoria e de virtudes, não se confundindo com os meros desejos e opiniões do povo. É nesse sentido que Burke defendia o mandato independente na atividade de um representante. Como argumenta em seu famoso discurso aos eleitores de Bristol. “O Parlamento é uma assembleia deliberante de uma nação, com um único interesse – o de todos; onde não deveriam influir fins e preconceitos locais, mas o bem comum”. É, portanto um direito e um dever dos membros do Parlamento seguir sua própria consciência e julgamento, independente, ao invés de obedecer aos desejos ou instruções de sua base.

Burke também questiona o caráter racionalista e idealista do movimento, salientando não se tratar simplesmente do fato de estar a revolução provocando o desmoronamento da velha ordem, mas de estar causando a deslegitimação dos valores tradicionais, destruindo assim toda uma herança em recursos materiais e espirituais arduamente conquistada pela sociedade. Contrapondo-se a esses males, Burke exalta as virtudes da sabedoria tradicional, da prescrição, da aceitação de uma hierarquia social e da propriedade, e da consagração religiosa da autoridade secular. É particularmente nesta obra que se encontram expostos de forma mais clara os fundamentos e traços conservadores do pensamento de Burke.

Burke e as AbstraçõesÉ uma tarefa demasiado árdua discutir em uma breve apresentação os vários e intrincados aspectos envolvidos no pensamento de Burke, principalmente por se tratar de um pensador e político que nunca chegou – nem mesmo nas Reflexões – a expor de modo sistemático suas ideias fundamentais. Estas, ao contrário, emergem em meio a críticas e argumentos construídos na discussão acerca de questões concretas. Sua despreocupação com a sistematização de seu pensamento muito se deve ao fato de esposar uma visão hostil às abstrações. Para Burke, as concepções teóricas, sem contato com a realidade, muitas vezes obstruem ou corrompem a ação política, por não levar em consideração as circunstâncias complexas em que os problemas estão envolvidos: São as circunstâncias que fazem com que qualquer plano político ou civil seja benéfico ou prejudicial para a humanidade. Desse modo, princípios abstratos não podem ser simplesmente aplicados na solução de problemas políticos reais. De fato, foi essa a primeira grande objeção de Burke à Revolução Francesa, um movimento motivado por princípios abstratos como a liberdade e a igualdade. Isso não significa, no entanto, que Burke tenha evitado fazer generalizações teóricas. "Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim." José Ortega y Gasset 

Burke e a História - A busca de significado na história perpassa todos os discursos e escritos mais importantes de Burke. Podemos conjecturar o futuro apenas pela apreensão do passado, defendia Burke; e, quanto ao presente, anteviu – ainda que não em tantas palavras – o aforismo de George Santayana de que aqueles que ignoram o passado estão condenados a repeti-lo. A história é um registro da ação da Providência, acreditava – ainda que os caminhos de Deus muitas vezes sejam misteriosos para nós.

Burke a Constituição e a Coroa - Burke bateu-se com o rei e com a maioria dos ministros por trinta anos; fez oposição a Jorge III com especial mordacidade durante a disputa a respeito da política norte-americana, ao acreditar que, se o rei tivesse sucesso em diminuir as liberdades norte-americanas imediatamente tornara as políticas inglesas tão arbitrárias (ignorando a constituição) como as d Jaime II. Entretanto sempre foi leal à instituição da Coroa, e quando os radicais começaram a falar de reis cassados aos moldes da França, Burke (mudando de frente mas não de fundamento) voltou-se contra tais inimigos da antiga constituição com um vigor que excedeu até o demonstrado diante das aspirações de George III. 

“A reverência pela Igreja e pela Coroa, pela história e pela tradição, a preferência pela sociedade orgânica em lugar de uma filosofia atomística de direitos naturais dos revolucionários do século XVIII tornaram-nos inimigos dos whigs foxistas.” Escreveu Carl B. Cone (1916-1995) a respeito de Burke e seus amigos. 

Burke e a Escravidão

Burke também não desejava que os norte-americanos obtivessem cadeiras na Câmara dos Comuns. Esse projeto era impraticável. Além do mais, como escrevera na The Annual Register de 1765, dar distritos eleitorais às colônias que admitiram a instituição da escravidão não estaria em consonância com a natureza do Parlamento:
(...) o senso comum (bom senso) e, mais ainda, a autopreservação parecem impedir que aqueles que se permitem ter direitos ilimitados sobre a liberdade e a vida de outrem possam partilhar qualquer fração da elaboração das leis para aqueles que há muito tempo já renunciaram a tais distinções cruéis e injustas.  

Burke – Conservadorismo Reformista? Da obra O grande debate  Edmund Burke, - Yuval Levin

Uma das principais questões sobre Burke foi a dúvida se ele teve um conjunto de opiniões durante a vida ou se a Revolução Francesa o transformou de algum modo. Como vimos, ele passou as primeiras duas décadas de sua carreira política defendendo vários tipos de reforma: das finanças do governo inglês, de seu tratamento das minorias religiosas, de sua política comercial e outras. Passou grande parte do tempo lutando contra a inércia da política inglesa. Mas, depois da revolução na França, que temia que pudesse ser importada para a Grã-Bretanha, transformou-se, acima de tudo, em um defensor constante das tradições políticas inglesas. Opôs-se vigorosamente a todos os esforços para enfraquecer o poder da monarquia e da aristocracia, bem como alertou contra reformas na política fundamental (como movimentos na direção de uma maior democratização), que poderiam separar a nação de suas longas tradições. Consequentemente, às vezes foi acusado de modificar suas visões básicas e se voltar contra antigos partidários e amigos. A acusação foi ouvida pela primeira vez ainda em vida (enunciada por Paine, entre outros) e repetida por alguns de seus biógrafos e interpretadores desde então.

Mas tal acusação interpreta erroneamente suas visões iniciais e tardias, negligenciando os argumentos que ofereceu tanto como reformador quanto como conservador da tradição política inglesa. Esses argumentos eram sempre sobre encontrar equilíbrio entre estabilidade e mudança — a questão que, como veremos, estava no âmago de suas ambições. Nas palavras finais de Reflexões sobre a revolução na França, claramente prevendo a acusação de inconsistência, ele se descreveu como “alguém que deseja preservar a consistência, mas que pretende fazê-lo variando os meios de chegar a esse fim e que, quando a estabilidade do navio em que viaja pode ser ameaçada pelo sobrepeso em um dos lados, deseja carregar o pequeno peso de suas razões para aquilo que pode preservar essa estabilidade”.

Essa imagem de um homem tentando equilibrar seu navio — ou equilibrar seu país em um mar de problemas — contra várias ameaças à sua preciosa estabilidade é adequada, à luz das variadas causas e argumentos de Burke durante sua movimentada carreira. Ele foi um reformador quando alguns elementos da constituição inglesa ameaçavam sufocar o todo. Foi um preservador quando lhe pareceu, como disse David Bromwich, “que a revolução é a suprema inimiga da reforma”.4 Estabilidade, para Burke, não é estagnação, mas uma maneira de pensar sobre a mudança e a reforma, e sobre a vida política em geral. Como veremos, essa foi uma metáfora central em seu pensamento político.
Will & Ariel Durant, História da Civilização, Vol. 10, A Era de Rousseau

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