Da obra A linguagem usual e a composição de Júlio Nogueira.
Eis-nos face a face com o assunto sobre que temos de discorrer, produzindo uma composição de trinta ou quarenta linhas, no mínimo. O assunto é um desses temas abstratos, que nos parecem áridos, avaros de ideias. Seja: a “amizade”, por exemplo.
Que dizer sobre a amizade? Como encher tantas linhas, formulando períodos sobre períodos, se as ideias nos escapam, se a imaginação está inerte, se nada encontramos no cérebro que nos pareça digno de ser expresso de forma agradável, e sobretudo, correta? Qual a orientação que devemos seguir versando tal assunto até a conclusão, de maneira que nos desempenhemos dessa tarefa superior às nossas forças?
Agora a resposta, o remédio. Antes de tudo: se o nosso estado de espírito é de perplexidade, se nos domina essa preocupação pungente, esse desânimo de chegar a um resultado satisfatório, o que temos de fazer é – não começar a tarefa imediatamente.
Em vez de lançar a esmo algumas exclamações, algumas frases inexpressivas sobre o papel, reflitamos, concentremo-nos. Empreguemos uma quarta parte do tempo de que dispomos em pensar, em metodizar o assunto, em dividi-lo nos pontos que ele comporta e em submetê-lo aos coeficientes amigos
que aqui vamos enumerar e que nos darão mais que a matéria necessária. Esses coeficientes protetores não serão sempre os mesmos nem no mesmo grau para todos os assuntos, mas há-os para tudo. Chamam-se definição, distinção, considerações gerais, antecedentes, tempo, lugar, comentários, narração a propósito do tema (fato conhecido, anedota, fábula...), consequências, discurso direto e outros que o engenho de cada um poderá estremar. Vamos colher aqui o que nos pode servir para o assunto dado – a amizade.
A definição nos dirá ser a amizade um sentimento que consiste em estimar a outrem, querer a sua presença, desejar-lhe todo o bem possível; sentimento que traz um grande encanto à vida. A distinção nos sugere que a amizade pode ser verdadeira ou apenas aparente. Nesta segunda classe estamos a ver os interesseiros, os que se dizem nossos amigos, pensando em obter vantagens e favores, e que, passada essa possibilidade, nos voltam as costas, nem nos reconhecem nos dias difíceis para nós. Por esse caminho virão também outras ideias. As considerações gerais serão no sentido de cada um semear amizade por toda parte, fazer-se estimar por todos, desarmar prevenções que às vezes, sentimos contra certas pessoas em que depois só reconhecemos bons predicados e a quem estendemos francamente a mão de amigo. Citemos a propósito o provérbio que diz: Mais vale amigo na praça que dinheiro na caixa. O Tempo nos poderia servir. É justo considera-lo o cadinho da verdadeira amizade, a qual se perpetua, resistindo aos embates da vida. O lugar nos dirá que a distância não é nociva à verdadeira amizade. Os amigos, ainda que separados, continuam a interessar-se pela sorte recíproca: correspondem-se, trocam notícia de caráter pessoal.
Podemos recorrer a fatos históricos ou lendários que se apliquem à matéria. Aludamos ao caso de Dâmon e Pítias, que nos dará muitos pares de linhas. Se não o conhecemos, contemos um fato da vida real e, se não nos ocorre nenhum, inventemo-lo! Imaginemos alguém que chega de uma longa viagem, a quem dizem que um seu amigo está morrendo à míngua num casebre dos subúrbios, porque os negócios lhe correram mal e uma moléstia cruel o salteou, quebrando-lhe toda a atividade. Descrevamos o encontro dos dois, as medidas que o recém chegados toma, transferindo para o conforto de sua residência o amigo enfermo: a chamada do médico, a compra de remédios e dieta necessária e, por fim, o restabelecimento do amigo, que vota à atividade da vida em ainda apoiado pelo outro, faz bons negócios e satisfaz os seus compromissos. Imaginemos agora o que aconteceria se não fosse esse ato de amizade.
Procedendo com este método ainda parecerá difícil a tarefa? Decerto que não. A dificuldade primacial estava na produção das ideias, mas os coeficientes amigos nos salvaram.
Pensando nele, investigando a melhor maneira por que se podem aplicar ao assunto, facílimo será organizar o nosso plano, isto é, o arcabouço, as linhas gerais da nossa composição, antes do que não devemos absolutamente iniciar a tarefa.
Falamos ou escrevemos quando temos alguma coisa que dizer. A ideia surge no cérebro e exterioriza-se pela palavra. No colóquio o apoio ou a contestação dos nossos ouvintes vai despertando novas ideias, que por sua vez, se vão exprimindo. Na linguagem escrita, porém, falta-nos esse estimulante, esse aparelho produtor de novas ideias. O nosso cérebro por si só é que não há de fazer o trabalho. Por isso devemos separar todas as peças da nossa composição e procurar materiais por esses processos, uma vez que não tenhamos o dom de escrever de improviso, o que só é dado a raros indivíduos.