Por Wagner
De alguma ilha do mar Egeu, um cego traçava um triste destino a bravos guerreiros, para que assim eles fossem lembrados nas gerações vindouras - o canto excelso dos vales. Cá estamos, alguns milênios depois, tentando entender essa história.
A Ilíada de Homero, O Poema Épico, esses vinte e quatro cantos que fundaram a literatura ocidental dizem respeito a certos acontecimentos ocorridos entre entre 1300 a.C. e 1200 a.C., ao longo de 51 dias no décimo ano do Cerco grego à cidade de Troia, localizada na região a que hoje chamamos Eurásia, mais precisamente na Turquia.
A Ilíada de Homero é parte de um contexto maior - O Ciclo Épico - conjunto de obras poéticas que tratavam das duas grandes guerras travadas pelos povos Helênicos: a de Tróia e a de Tebas. Dos poemas do Ciclo Épico, apenas dois, A Ilíada e a Odisseia se conservaram intáctos. No entanto, seis pequenos poemas constantes do sumário do manuscrito mais famoso da Ilíada, o Venetus A, por tratarem de fatos anteriores e posteriores à Guerra de Tróia, nos dão uma ideia mais geral deste Ciclo Troiano, no qual os eventos narrados pela Ilíada estão inseridos.
Os oito poemas do Ciclo Troiano:
1. Cíprias - (Cantos Ciprios) - composto por onze cantos que narravam os antecedentes da Guerra de Troia, desde as queixas de Gaia, a Mãe Terra que suportava a pesada carga de uma superpopulação, passando pela interferência de Eris no casamento de Peleu e Tetis culminando no famoso Julgamento de Paris, até o cerco à Troia. Obra atribuída a Estasino de Chipre.
2. Ilíada - Formada pelos vinte e quatro cantos decassílabos de Homero nos quais são narrados os eventos referentes a 51 dias do décimo ano da guerra de Tróia, desde a recepção de Crises, por Agamémnon que lhe nega a restituição de sua filha Criseida até os funerais de Heitor, cujo corpo, fora resgatado pelo seu pai, Príamo, rei de Tróia.
3. Etiópida - Composta pelos cinco cantos que descrevem os momentos posteriores à morte de Heitor e a trégua concedida pelos gregos para a realização de seu funeral, cuja autoria é atribuída a Arctino de Mileto. Destaca-se o socorro prestado à Troia pela facção das Amazonas, liderada pela sua rainha Pentesileia, assassinada em batalha pelas mãos de Aquiles. Mêmnon, filho da deusa Éos (Aurora), lidera tropas etíopes e logra uma vitória para os troianos. Aquiles é morto por Páris.
4. Pequena Ilíada – os quatro cantos que a compõem, iniciam a narrativa com os jogos fúnebres em homenagem à Aquiles e a disputa entre Odisseu (Ulisses) e Ájax pelas armas do Pelida (Aquiles), culminando mais tarde na loucura e suicídio de Ájax. Trata ainda da morte de Páris, da breve união entre Deífobo e Helena até a reviravolta na narrativa iniciada pelos indícios de uma aliança em prol da queda dos Troianos firmada entre Odisseu e Helena.
5. Iliupérsis – (ou A Destruição de Tróia) refere-se a dois cantos atribuídos a Arctino de Mileto que relatam a recepção troiana ao Cavalo de Troia a despeito das advertências de Cassandra, o abandono de Tróia por parte de Anquises, Eneias e seus homens – fato este que será o marco da Eneida de Virgílio. Trata das mortes de Príamo, Rei de Tróia e do bebê Astíanax, filho de Heitor, pelas mãos do filho de Aquiles, Neoptólemo e como este reclama a posse de Andrômaca como sua cativa. Menelau mata Deífobo e recupera a sua esposa, Helena. Ainda nesses cantos, Menelau mata Deífobo e recupera Helena, Cassandra encontra refúgio no altar de Atena, enquanto Políxena é sacrificada ao espírito de Aquiles.
6. Nóstoi – (Os Regressos) composto por cinco cantos de autoria desconhecida que narram a partida dos Aqueus após a destruição de Tróia e como fora realizada a distribuição da pilhagem entre os principais guerreiros. A fim de apaziguar Atenas, enfurecida pela conduta dos Aqueus na guerra, Agamémnon permanece em Tróia, enquanto Menelau e Helena partem, no entanto, por conta de uma tempestade são obrigados a passarem um tempo no Egito. Em Micenas, Agamémnon é morto por Orestes, após trama armada por Clitemnestra e seu amante Egisto – a vingança pela morte de Ifigênia, oferecida em sacrifício à Àrtemis por seu pai, Agamémnon, a fim de que os ventos possibilitassem a partida dos navios helênicos rumo a Tróia.
7. Odisseia – os vinte e quatro cantos homéricos que descrevem as aventuras de Ulisses (Odisseu) durante dez longos anos tentando regressar a sua pátria, Ítaca.
8. Telogonia. Dois cantos que narram outras aventuras de Ulisses após conseguir retornar à sua casa em Ítaca. Descrevem a busca de Ulisses por Telógono, seu filho com a feiticeira Circe, que viria matar o pai num confronto, confirmando uma antiga profecia feita por Tirésias, no canto XI da Odisseia.
Vale lembrar que o Ciclo Épico era composto pelos ciclos Troiano e Tebano, deste último, faziam parte três poemas - Edipodia, Tebaida e Epígonos. Todas estas obras integravam o conjunto de poemas desaparecidos do Ciclo Épico, cujos temas foram tão bem explorados na Tragédia Grega, atravessando os milênios e chegando até nós graças o gênio criativo de Ésquilo, Sófoles e Eurípedes.
A fraqueza dos deuses gregos e as virtudes daqueles homens
Se por um lado encontramos nos mitos gregos homens e mulheres divinizados pela grandeza de seus feitos como Diomedes, Heitor, Ifigênia e Penélope, por outro, deuses são flagrados constantemente padecendo das mais abjetas fraquezas humanas - intemperança, devassidão, perversidades, inveja e covardia. Na Ilíada, nos eventos entre o grande Titida, Ares e Afrodite, nos deparamos com deuses olímpicos fugindo às pressas para o refúgio de sua morada, após serem feridos por um simples mortal. Constrangimento ao qual não encontramos qualquer um daqueles homens, que por dez longos anos, longe de sua terra natal ou defendendo-a de invasores humanos e divindades ressentidas, tombavam naquelas campinas banhadas pelo seu próprio sangue.
Aquiles, arrastando o corpo de Heitor - afresco no andar superior do salão principal do Achilleion em Corfu, Grécia.
Aquiles, o grande herói, pero que no mucho
O próprio Aquiles, um semideus tomado por muitos como o grande heroi da Ilíada, lutava em causa própria. Munido de poderes sobre-humanos e armas forjadas por Hefesto, abatia inimigos mais corajosos, pois cientes do inevitável, ainda assim o enfrentavam em combates assimétricos. O grande dilema do Pelida foi escolher entre dois destinos que os deuses lhe prescreveram - uma pacata, porém longa vida no ceio pacífico de uma família ou aquela breve mas renomada existência no inferno das batalhas. E foi apenas por uma questionável glória pessoal - ser lembrado - que lutava, e por ela, chegou ao ponto de conspirar contra seus aliados, por intermédio de sua mãe junto a Zeus, para que seus irmãos em armas sofressem as supostas consequências de sua ausência e suplicassem por seu retorno ao campo de batalha. Aquiles, por pura vaidade não apenas se negou a lutar mas ainda sabotou os gregos por conta da posse de uma cativa, Briseida, após se indispor com um rei que, se a tomou para si, também havia abrido mão da própria filha pela causa grega*; tal conduta de Aquiles, muito próxima daquilo que se conhece por traição, custou a vida de muitos aqueus, incluindo a de Pátroclo, o seu melhor amigo. Invertendo a conhecida frase de Churchill, entre a guerra e a desonra, Aquiles escolheu a guerra...
*Bem antes dos eventos narrados no poema de Homero, ainda nos preparativos da partida rumo à Troia, segundo o relato de Eurípedes, Agamemnon estava numa floresta sagrada quando provocou a ira de Ártemis ao abater um cervo muito estimado por aquela deusa. Como punição os ventos de Áulis cessaram impossibilitando a partida de seu exército. A deusa da caça exigiu que o rei sacrificasse sua própria filha, Ifigênia. Agamemnon usando de artifícios faz com que Clitemnestra, sua esposa, traga Ifigênia até o porto de Áulis para que se realizem as cerimônias de um suposto casamento entre a princesa e Aquiles. Quando se arrepende já é tarde. Acredita-se que foi por conta desta tragédia que Agamemnon foi morto dez anos depois, em trama armada por Clitemnestra e seu amante Egisto.
Shakespeare não poupou Aquiles:
Quarrel of Achilles and Agamemnon William Page
“Foi desprezada a essência do governo
E vede quantas tendas gregas restam
Vazias na planície, vis facções.
Se o general não é como a colmeia,
À qual voltam, atentas, as abelhas,
Que mel é de esperar? Sem hierarquia
O indigno iguala o digno na beleza.
O próprio céu, os astros e este mundo
Observam grau, prioridade, escala,
E curso, e proporção, forma e rodízio,
Comando e posto em toda a linha de ordem.
E portanto, vede o glorioso planeta, o Sol,
"Pacta sunt servanda"
A Dissonância: "Enquanto o tema se desenvolvia, no entanto, surgiu no coração de Melkor o impulso de entremear motivos da sua própria imaginação que não estavam em harmonia com o tema de Ilúvatar;" O Silmarillion - J. R. R. Tolkien
"Tróia, ainda de pé sobre a base, já teria sido aniquilada e a espada do grande Heitor há muito tempo já não teria dono, não fossem os erros que vou citar.
“Foi desprezada a essência do governo
E vede quantas tendas gregas restam
Vazias na planície, vis facções.
Se o general não é como a colmeia,
À qual voltam, atentas, as abelhas,
Que mel é de esperar? Sem hierarquia
O indigno iguala o digno na beleza.
O próprio céu, os astros e este mundo
Observam grau, prioridade, escala,
E curso, e proporção, forma e rodízio,
Comando e posto em toda a linha de ordem.
E portanto, vede o glorioso planeta, o Sol,
trona numa nobre proeminência
no meio das outras esferas;
seu olhar salutar corrige o sinistro aspecto
dos planetas funestos e se impõe com autoridade
soberana e absoluta, aos bons e aos maus astros.
Mas quando os astros entram em desordem,
Que pragas, que presságios, que motins,
Que revoltas no mar, tremor na terra,
Tempestade nos ventos, medos, horrores,
Perturbam, quebram, rasgam as raízes
Da unidade e calma dos Estados.
Se acaso se destrói a hierarquia
Que é a escada de todo alto desígnio,
Toda a empresa se abala. Como podem
Classes de escolas, ou comunidades,
Pacífico comércio entre cidades,
A primogenitura, cetros e coroas,
Senão por graus manter-se onde merecem?
Remova-se esses graus, falhe essa nota
E vejam que discórdia! As coisas entram
Em conflito gratuito; as águas, soltas,
Erguendo-se mais alto do que as praias
Tornam-se em lama todo o globo sólido:
O mando entrega-se à imbecilidade,
E o rude filho fere e mata o pai.
Seria a força o certo: o certo e o errado,
De cujas lutas a justiça nasce,
Perderia o nome, coa justiça.
Então tudo se enquadra no poder,
O poder na vontade e no apetite,
E o apetite – lobo universal –
Baseado no poder e na vontade,
Terá co’a força o mundo como presa,
E acabará comendo-se a si mesmo."
Que pragas, que presságios, que motins,
Que revoltas no mar, tremor na terra,
Tempestade nos ventos, medos, horrores,
Perturbam, quebram, rasgam as raízes
Da unidade e calma dos Estados.
Se acaso se destrói a hierarquia
Que é a escada de todo alto desígnio,
Toda a empresa se abala. Como podem
Classes de escolas, ou comunidades,
Pacífico comércio entre cidades,
A primogenitura, cetros e coroas,
Senão por graus manter-se onde merecem?
Remova-se esses graus, falhe essa nota
E vejam que discórdia! As coisas entram
Em conflito gratuito; as águas, soltas,
Erguendo-se mais alto do que as praias
Tornam-se em lama todo o globo sólido:
O mando entrega-se à imbecilidade,
E o rude filho fere e mata o pai.
Seria a força o certo: o certo e o errado,
De cujas lutas a justiça nasce,
Perderia o nome, coa justiça.
Então tudo se enquadra no poder,
O poder na vontade e no apetite,
E o apetite – lobo universal –
Baseado no poder e na vontade,
Terá co’a força o mundo como presa,
E acabará comendo-se a si mesmo."
(Shakespeare, Troilus e Créssida, I.iii. 78-124 - fala de Ulisses).
Existe uma curiosa semelhança entre os eventos que abrem e fecham o poema - parte do momento em que o sacerdote de Apolo, Crises, roga pela liberdade de sua filha Criseida tomada como despojo por Agamemnon e termina com o funeral de Heitor, cujo cadáver mutilado, fora resgatado das mãos de seu algoz, Aquiles, por um também aflito e suplicante pai em busca do filho - Príamo, rei de Troia - se o atrida, que havia sacrificado a própria filha*, humilha um sacerdote provocando a ira dos deuses, Príamo, rei dos teucros e pai amoroso, ostenta a nobreza ao humilhar-se, conquistando o respeito de seu maior inimigo.
Crises diante de Agamemnon. Mosaico, Nápoles, Casa das Ninfas, século IV.
Príamo prostrado diante de Aquiles implorando o cadáver de seu filho, por Teobold Cartran
Os domínios de cada deus.
Zeus, Poseidon e Hades
Após derrotar o seu pai, Cronos, na grande batalha que deu início a Geração Olímpica dos Deuses, Zeus e seus irmãos, Poseidon e Hades, dividiram entre si os domínios daquilo que, segundo a Mitologia Grega, um dia fora simplesmente o Caos. Coube a Zeus, além da supremacia no Olimpo, o governo dos céus e dos eventos meteorológicos, daí o epíteto - aquele que cumula nuvens. Os mares ficaram a cargo de Posseidon e sob a tirania do taciturno Hades, a parte mais sombria, o mundo inferior, o Tártaro; seus súditos - os espíritos dos que já não vivem.
Caronte, o Barqueiro
O Barco de Caronte por Jose Benlliure Y Gil
Segundo a crença, Caronte era o barqueiro responsável pela travessia dos recém mortos cruzando os rios Estige e Aqueronte - a funesta jornada sem volta até os vales tenebrosos de Hades. Uma ou duas moedas colocadas sobre os olhos ou boca dos cadáveres era o preço da passagem segundo a tradição funerária dos antigos gregos. Os espíritos dos que não pagavam ou cujos corpos não haviam passado pelos rituais de costume, eram repelidos impiedosamente pelo canoeiro e condenados a vagar por aquelas margens lamacentas durante um século. Daí o empenho de Príamo em resgatar o corpo de seu filho, o valente Heitor, príncipe de Troia.
Cite-se a propósito, a cena descrita pelo autor romano Luciano de Samósata, 125 - 181, em sua obra Diálogos dos Mortos, na qual Caronte, o barqueiro de Hades, insistia desesperadamente com o filósofo cínico Menipo para que este lhe entreguasse o óbolo, pagamento obrigário, sem o qual os mortos não poderiam passar para o reino inferior. Sucede-se que Menipo não tinha com que pagar, pelo que só restaria uma solução: colocar na margem da vida o passageiro inadimplente.
Todo o cerco, segundo Dares Frigio, durou dez anos, oito meses e doze dias, 806 mil gregos e 278 mil troianos tombaram naquelas planícies, ressoando-lhes em torno a armadura. A maioria dos historiadores situam a Guerra de Troia no período que vai de 1194 a 1184 a.C. A história aqui, muitas vezes se confunde com o mito, vários eventos segundo a crença grega, ja haviam sido previstos por oráculos e a própria guerra fora um expediente utilizado por Zeus a fim de aliviar a pesada carga de seres humanos sobre uma exausta e queixosa Gaia (Terra).
Arthur Heinrich Wilhelm Fitger - Diomedes Ferindo Afrodite.
Ilíada, Canto V
Após Diomedes ferir Afrodite, as palavras aladas de Homero na vóz do Titida:“Filha de Zeus poderoso, conserva-te longe da luta.
Ou seduzir não te basta mulheres privadas de força?
Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto,
creio que só o nome ‘guerra’ há de grande pavor inspirar-te.”
O Segredo das muralhas.
Os gregos conceberam deuses humanos demais. Zeus, que havia destronado seu antecessor, o próprio pai, Cronos, dando origem a geração olímpica, foi também surpreendido por algumas insurreições arquitetadas por seus pares. Numa delas, com a ajuda da Nereida Tetis que viria depois ser a mãe de Aquiles, manteve-se no poder e puniu os rebeldes. Dentre os frustrados estavam Poseidon e Apolo, como punição ambos foram submetidos à maior humilhação que se poderia impor a uma divindade Olímpica: reduzi-los, ainda que por apenas um breve período, a meros serviçais de um simples mortal. O escolhido foi Laomedonte rei de Troia pai de Príamo.Uma das tarefas: a construção das famosas muralhas, eis porque eram barreiras intransponíveis e jamais foram superadas pela força dos homens - não foram erguidas por mãos humanas...
Continua.