terça-feira, 20 de novembro de 2018

O Conservadorismo Anglo-Saxão 11 - Inglaterra e a Revolução Francesa

 Will & Ariel Durant, História da Civilização

Após quase exaurir-se na guerra contra a Companhia das Índias Orientais, Burke virou-se para a Revolução Francesa como sua inimiga pessoal, e, no decurso dessa nova campanha deu uma grande contribuição à filosofia política.

Previra a Revolução vinte anos antes dela ocorrer. “De tal forma debatem-se as finanças da França, em situação difícil e perturbadora, suas despesas ultrapassando de tal forma as receitas em todos os setores, que qualquer um que examine seus negócios com certo grau de atenção ou informação, não pode deixar de esperar a cada movimento um extraordinário colapso de todo o sistema, cujos efeitos, na França e até mesmo em todo a a Europa, são difíceis de conjecturar". Em 1772, foi à França. Em Versalhes, viu Maria Antonieta, então Dauphine. Jamais se esqueceu daquela visão de juventude e beleza, felicidade e altivez.  Teve a impressão favorável da nobreza francesa e ainda mais do clero francês. Escandalizou-se com a propaganda anticatólica, e às vezes, anti-religiosa, dos philosophes. De volta à Inglaterra, advertiu seus patrícios contra o ateísmo, “o golpe mais horrível e cruel que se possa dar na sociedade civil”.

Quando do advento da Revolução, fico alarmado pela aclamação que esta recebeu de seu amigo Fox, que saudou a queda da Bastilha como “o maior evento jamais acontecido no mundo (...) e o melhor". Ideias radicais oriundas das campanhas de Wilkes e da Sociedade dos Defensores da Carta dos Direitos lentamente espalharam-se na InglaterraEm 1761, um escritor obscuro propôs o comunismo como cura para todos os males sociais, com exceção da superpopulação, a qual podia anular qualquer tentativa para minorar a pobreza. Em 1788, formou-se uma Sociedade para Comemorar a Revolução de 1688 (Revolução Gloriosa), tendo entre seus membros importantes clérigos e pares do reino. Em 4 de novembro de 1789, por ocasião de sua reunião, ficaram tão perturbados por um padre unitário, Richard Price, que mandaram uma mensagem de congratulações à Assembleia Nacional em Paris, expressando a esperança de que o “glorioso exemplo dado pela França” pudesse “encorajar outras nações a estabelecer o direito inalienável da humanidade”. A mensagem foi assinada pelo terceiro Conde Stanhope, presidente da sociedade e cunhado de William Pitt.

O sermão e a mensagem despertaram o temor e o rancor de Burke. Tinha então, sessenta anos, alcançado o direito de ser conservador. Era religioso e proprietário de grande extensão de terras. A Revolução lhe parecia não só “o fato mais surpreendente até então ocorrido no mundo” como também a agressão mais ultrajante contra a religião, a propriedade, a ordem e a lei. Em 9 de fevereiro de 1790, declarou na Câmara dos Comuns que se algum de seus amigos tentasse introduzir na Inglaterra semelhante democracia, como a que estava se concretizando na França, ele renunciaria a essa amizade por mais duradoura e carinhosamente estimada que fosse. Fox acalmou o orador com o seu famoso elogio a Burke, declarando-o o seu melhor educador. O rompimento entre os dois foi adiado.

Em novembro de 1790, Burke publico Reflexões Sobre a Revolução em França na forma de uma carta (365 páginas) a “um cavalheiro em Paris”. Chefe dos liberais durante a Revolução Americana, Burke era então o herói da Inglaterra conservadora. Jorge III expressou seu contentamento com o velho amigo. O livro tornou-se a bíblia das cortes e aristocracias.

Na época, a compreensão de Burke sobre a Revolução Americana - de que o Parlamento contribuía para a instabilidade através do rompimento com as expectativas do eleitorado americano em relação à sua autonomia [do Parlamento] — foi extremamente influente. Burke foi essencial para estabelecer um acordo que solucionou, por algum tempo, a Crise da Lei do Selo. "A Lei do Selo (Stamp Act ou Duties in American Colonies Act 1765, em inglês) foi aprovada pelo Parlamento Inglês em 1765, estabelecendo que todos os documentos em circulação na colônia americana deveriam receber selos provenientes da metrópole. A Lei do Selo determinava que todos os jornais, livros e documentos publicados nas colônias deveriam pagar uma taxa, o que implicava mais despesas para os colonos. Foi revogada em 1766" Lamentavelmente, mentes frias como a de Burke não prevaleceram, o Parlamento retomou suas políticas agressivas e a guerra pela independência seguiu-se. 

Catarina a Grande, outrora amiga e querida dos philosophes, enviou congratulações ao homem que se propusera destrona-los.

Burke começou com uma referência ao Dr. Price e à Sociedade para Comemorar a Revolução. Deplorou a entrada de eclesiásticos nas discussões políticas. Tinham por obrigação guiar as almas à caridade cristã, e não fazer reformas políticas. Não confiava no sufrágio universal pleiteado por Price. Achava que a maioria seria pior tirano do que o rei, e que a democracia degeneraria em domínio do populacho. A sabedoria não reside nos números, mas na experiênciaA natureza nada sabe a respeito de igualdade. A igualdade política é uma “ficção monstruosa, que, inspirando ideias falsas e vãs expectativas nos homens destinados a percorrer os obscuros caminhos de uma vida laboriosa, serve apenas para agravar aquela desigualdade real que nada pode removerA aristocracia é inevitável, e quanto mais velha for, melhor cumprirá sua função de silenciosamente instituir a ordem social sem a qual não poderá haver estabilidade, nem segurança, nem liberdade. A monarquia hereditária é boa porque dá ao governo uma unidade e continuidade sem a qual as relações sociais e legais entre os cidadãos cairia numa torrente agitada e caótica. A religião é boa porque ajuda a agrilhoar esses impulsos anti-sociais que correm como um fogo subterrâneo sob a superfície da civilização, e que somente poderá ser controlada pela constante cooperação do Estado e da Igreja, lei e credo, medo e reverência. Aqueles filósofos franceses que minaram a crença religiosa nas camadas educadas de seu povo, estavam levianamente largando as rédeas que impediam os homens de se tornarem animais.

Burke revoltou-se com o triunfo da plebe em Versalhes sobre um “nobre e legítimo monarca” tratando-o com “mais fúria, ultraje e insulto do que sobre qualquer um” que se levantasse “contra o mais ilegal usurpador e o tirano mais sanguinário.” Entra aqui a famosíssima página, que fez vibrar nossa mocidade:

Faz agora dezesseis ou dezessete anos desde que vi a Rainha da França, naquela época a Delfina, em Versalhes, e certamente jamais pisou neste globo (olhos), que ela apenas parecia tocar, uma visão mais deliciosa. Vi-a bem acima do horizonte, decorando e alegrando a esfera celeste em que principiou a mover-se – cintilante como a estrela da manhã, cheia de vida, esplendor e alegria. Oh, que revolução! E que coração devo eu ter para contemplar, sem emoção, essa elevação e essa queda! (coação exercida pela turba sobre Luís XVI e Maria Antonieta em Versalhes, fazendo-os voltar a Paris para serem confinados nas Tulherias, sob a vigilância popular, 5 de outubro de 1789). Mal podia eu sonhar, quando, ao lhe tributar títulos de veneração acrescidos aos de um amor entusiasta, distante e respeitador, que ela um dia fosse obrigada a levar escondido em seu seio aquele forte antídoto contra a desgraça. Mal podia eu sonhar que viveria para ver esses desastres recaírem sobre ela em uma nação de homens valorosos, em uma nação de homens honrados e cavalheiros. Pensei que mil espadas seriam logo tiradas de suas bainhas para vingar um olhar sequer que a ameaçasse insultuosamente. Mas a era do cavalheirismo foi-se. Sucedeu-a a dos sofistas, economistas e calculadores, e a glória da Europa extinguiu-se para sempre.

Sir Philip Francis riu-se de tudo isso como um devaneio romântico, assegurando a Burke que a rainha da França era uma Messalina e uma mulher qualquer. Assim pensaram muitos ingleses patriotas. Horace Walpole, todavia, afirmou que Burke havia descrito Maria Antonieta exatamente como ela me apareceu, na primeira vez em que a vi quando delfina.

À medida que a Revolução prosseguia, Burke continuava os ataques com uma Carta a um Membro da Assembleia Nacional (janeiro de 1791), na qual sugeria que os governos da Europa deveriam unir-se para por fim à revolta, restabelecendo o rei da França ao seu poder tradicional. Fox alarmou-se com a proposta, e, a 6 de maio, na Câmara dos Comuns, os amigos que haviam lutado lado a lado em tantas campanhas chegaram a uma dramática separação de seus caminhos. Fox reiterou seu elogio à Revolução. Burke levantou-se para protestar. É inoportuno, disse, em qualquer ocasião, mas especialmente a esta altura de minha vida, provocar inimigos, ou dar aos amigos motivos para abandonar-me. No entanto, se minha firme e inabalável adesão à constituição inglesa coloca-me em tal dilema, estou pronto a correr o risco. Fox assegurou-lhe que nenhuma separação de amizade estava envolvida nas suas divergências. Sim, sim, respondeu Burke, há uma perda de amigos, sei o preço da minha conduta (...) Nossa amizade está no fim. Nunca mais falou com Fox, exceto formalmente, na força da união dos dois durante o julgamento de Hastings.

Em seus escritos sobre a Revolução Francesa, Burke deu uma expressão clássica a uma filosofia conservadora. Seu princípio básico é não confiar no raciocínio de um indivíduo, mesmo brilhante, se ele entra em conflito com a tradição da raçaAssim como a criança não pode compreender as razões dos cuidados e proibições dos pais, da mesma forma o indivíduo, que é uma criança em comparação com a raça, não pode sempre compreender as razões dos costumes, convenções e leis que personificam a experiência de muitas geraçõesA Civilização seria impossível se a prática de todos os deveres morais, assim como os alicerces da sociedade, se apoiassem em tornar suas razões claras e concludentes a cada indivíduo. Até os preconceitos possuem sua utilidade. Prejulgam problemas atuais com base nas experiências passadas.

De modo que o segundo elemento do conservadorismo é a prescrição: a tradição ou instituição deveria ser duplamente reverenciada e raramente alterada quando já está escrita, ou consubstanciada na ordem social ou estrutura governamental. A propriedade privada é um exemplo de prescrição e da aparente irracionalidade do bom senso: parece absurdo que uma família tenha tanto e uma outra tão pouco, e ainda mais insensato que aquele que tem muito transmita sua propriedade a herdeiros que não levantaram uma palha para ganha-la. No entanto, a experiência demonstrou que os homens, em geral, não se abalarão para trabalhar e estudar, ou em laboriosos e custosos preparativos, a menos que possam chamar os resultados de seus esforços sua legítima propriedade, a serem transmitidos, em grandes proporções, segundo seus desejos. E a experiência demonstrou que a posse de bens é a melhor garantia de uma prudente legislação e da continuidade do Estado.

Um Estado não é apenas a associação de pessoas em determinado espaço e momento. É uma associação de indivíduos através dos tempos. A sociedade é na verdade um contrato (...) uma sociedade não apenas entre vivos, mas que entre estes e os que estão mortos, e aquele que ainda vão nascer; e essa continuidade é o nosso país. Nessa trindade conjunta a atual maioria poderá vir a ser uma minoria com o decorrer do tempo, e o legislador deve considerar os direitos do passado (através da prescrição) e do futuro assim como do presente. A política é, ou deveria ser, a arte de conciliar os objetivos das minorias conflitantes com o bem do grupo que está continuando. Além disso, não existem direitos absolutos, e sim abstrações metafísicas desconhecidas da natureza. Há apenas desejos, poderes e circunstâncias, e estas, circunstâncias dão a todo princípio político sua cor distintiva e efeito discriminatório. A conveniência é muitas vezes mais importante do que os direitos. A política deve ser ajustada não ao raciocínio abstrato humano, mas à natureza do homem, da qual o raciocínio é apenas uma parte, e de maneira alguma a mais importante. Devemos utilizar os materiais existentes.

Todas essas considerações são ilustradas pela religião. As doutrinas, mitos e cerimônias de uma religião podem não se adaptar ao nosso atual raciocínio individual, mas este fato será de menor importância no momento se forem compatíveis com as necessidades passadas, presentes e presumivelmente futuras da sociedade. A experiência demonstra que as paixões humanas só podem controlar-se pelos ensinamentos e observância da religião. Se formos mostrar nossa nudez (dar vazão aos nossos instintos) afastando-nos da religião cristã que tem sido (...) um grande manancial de civilização entre nós (...) tememos (conscientes de que o espírito não suportará um vazio) que uma superstição inculta, perniciosa e degradante tome o seu lugar.

Muitos ingleses rejeitaram o conservadorismo de Burke como um culto da estagnação, tendo Thomas Paine lhe respondido energicamente em Os direitos do Homem (1791-92). Contudo, a Inglaterra da velhice de Burke em geral apoiava o seu culto do antepassado. Quando a Revolução Francesa passou aos Massacres de Setembro, à execução do rei e da rainha e ao Reinado do Terror, a grande maioria dos ingleses sentiu que Burke havia previsto muito bem os resultados da revolta e a falta de religião, e durante um século completo a Inglaterra, embora eliminando seus burgos putrefatos e ampliando seu sufrágio, ateve-se resolutamente à sua constituição de rei, aristocracia, Igreja estabelecida e Parlamento pensando mais em termos de poderes reais do que dos direitos do povo. Após a Revolução, a França passou de Rousseau a Montesquieu, e Joseph de Maistre parafraseou Burke para os franceses arrependidos. Burke insistiu até o fim em sua campanha em prol de uma guerra santa, regozijando-se quando a França declarou guerra à Grã-Bretanha (1793). Jorge III desejou recompensar seu velho inimigo pelos recentes serviços, agraciando-o com a posição de par do reino e, com ele, o título de Lorde Beaconsfield, com o qual, mais tarde, Disraeli foi contemplado. Burke recusou, porém, aceitou a pensão de 2500 libras (1794). Quando surgiram rumores de negociações com a França, ele publicou Cartas sobre uma Paz Regicida (1797), clamando apaixonadamente para que a guerra continuasse. Só a morte abrandou-lhe o ardor (8 de julho de 1797). Fox propôs que ele fosse enterrado na Abasia de Westminster, mas Burke havia deixado instruções no sentido de um funeral simples, desejando ser enterrado na igrejinha de Beaconsfield. Macaulay considerou-o o maior inglês depois de Milton – o que pode ter diminuído Chatham e Lorde Morley, mais prudente, chamou-o o maior mestre de critério civil em nosso idioma – o que pode ter desconsiderado Locke. De qualquer modo, Burke foi o que os conservadores ansiavam, em vão, durante toda a Idade da Razão – um homem que pudesse defender os costumes de maneira tão brilhante quanto a de Voltaire na defesa da razão.

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